quarta-feira, 6 de junho de 2012

Deuses nunca parecem fazer sentido para mim.

O concerto da Orquestra Sinfônica do Recife foi cancelado. Mas eu não vou à aula de inglês. Eu domino a lição que a professora lecionará hoje. Além disso, não haverá aula nos próximos dois dias, que unificando com o fim de semana, poderá resultar em ótimos quatro dias de estudos musicais, ingleses, muito documentário e estudos para a semana de avaliação na próxima semana. Sobre a aula de inglês perdida: eu posso repor com outro turma que está na minha mesma lição.

Agora quero assistir um documentário sobre qualquer assunto relacionado à cosmologia com pudim; depois, eu posso terminar de ler o livro de Lispector.

Não posso esperar pela hora de ler o Livro do Ano na Minha Estante.

Eu achava que meu dia seria péssimo. Todo este pensamento começou quando na ida à escola, percebo, já no autocarro, que esqueço o dinheiro da tarifa. Fiquei inexpressivo quando dei-me conta disto. Então, um bondoso senhor, que preferiu não revelar seu nome, decidiu salvar minha vida pagando minha tarifa. Além de agradecê-lo com muitos "Obrigado! Muitíssimo obrigado, senhor!", disse-lhe que só Deus poderia pagá-lo. É raríssimo que minha pessoa diga-o, já que sou absolutamente cético nestas "questões divinas". Penso que este comportamento pode ser explicado com meu sentimento de desconcerto com a sociedade que vivo. Sou humanista e altruísta, gosto de pensar no que outras pessoas pensarão ou como hão de reagir. Este meu sentimento de desconcerto, faz-me pensar que a visão das pessoas acerca de mim é de amoralidade. Como a maioria das pessoas na sociedade são crentes, isto é, possuem crenças em alguma divindade sobrenatural que rege o cosmos, tento ser componente do grande grupo adotando atitudes que fazem condizer com seus conceitos, suas características, seus fundamentos. Isto demonstra a insegurança que tenho em mim mesmo e como tenho autoestima  decadente.

É melhor voltar para o documentário e ao pudim. 
Meu pai não tem o filho que ele planejou. Sou absolutamente o oposto de seu comportamento, modo de pensar e tantos outros aspectos que moldam a personalidade humana.

Estou triste por vários motivos.
Dies Irae


     Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão com vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige,.E quem gosta de nós quer que sejamos algumas coisa de que eles precisam.Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que um menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos todos semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior —  vive-se, sem sem ao menos uma explicação. E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade. E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu escrevi, pensam que eu tenho que continuar a escrever? Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar. Quereria fazer uma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração.
     E os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se. Nenhuma ocupação lhe agrada.  Nada do que eu fiz me agrada.E o que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia. E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me a ler o texto do  mundo, as manchetes já me deixam em cólera. E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo. Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre. E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. E as igrejas estão cheios dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera.
    Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho certo roubar para comer. — Acabo de ser interrompida pelo telefonema de uma moça chama da Teresa que ficou muito contente de eu me lembrar dela. Lembro-me: era uma desconhecida, que um dia apareceu no hospital, durante os quase três meses que passei para me salvar do incêndio. Ela se sentara, ficara um pouco calada, falara um pouco. Depois fora embora. E agora telefonou para ser franca: que eu não escreva no jornal nada de crônicas ou coisa parecida. que ela e muitos querem que eu seja eu própria, mesmo que remunerada para isso. Que muitos têm acesso a meus livros e que me querem como sou no jornal mesmo. Eu disse que sim, em porque eu também gostaria que fosse sim, em parte para mostrar a Teresa, que não me parece semiparalítica, que ainda se pode dizer sim.
     Sim, meu Deus. Que se possa dizer sim. No entanto neste mesmo momento alguma coisa estranha aconteceu. Estou escrevendo de manhã e o tempo de repente escureceu de tal forma que foi preciso acender as luzes. E o outro telefonema veio: de uma amiga perguntando-me espantada se aqui também tinha escurecido. Sim, aqui é noite escura às dez horas  da manhã. É a ira de Deus. E se essa escuridão se transformar em chuva, que volte o dilúvio,  mas sem a arca, nós que não soubemos um mundo onde viver e não sabemos de nossa paralisia como viver. Porque se não voltar o dilúvio, voltarão Sodoma e Gomorra, que era a solução. Por que deixar entrar na arca um par de cada espécie? Pelo menos o par humano não tem dado senão filhos, mas não a outra vida, aquela  que, existindo, me fez amanhecer em cólera.
    Teresa, quando você me visitou no hospital, viu-me toda enfaixada e imobilizada. Hoje você me veria paralítica e muda. E se tento falar, sai um rugido de tristeza. Então não é cólera apenas? Não, é tristeza também.

Escrito por Clarice Lispector e publicado no Jornal do Brasil a 14 de outubro de em 1967.

É assim que me senti ontem, é assim que sinto-me hoje.